Publicado originalmente no site VERMELHO, em 4 de junho de 2020
A morte de Miguel e a
invisibilidade das tantas Mirtes do Brasil
Mirtes Renata seria só mais uma mulher preta, mãe solteira,
se virando para sobreviver no dia a dia bruto desse mundo desigual, se não
fossem os tristes acontecimentos daquela tarde. Em dia de protestos
antirracistas, foi a tragédia que tirou a invisibilidade de Mirtes e Miguel.
Por Ana Cristina Santos
Terça-feira, 2 de junho de 2020. O Brasil virtual atinge
pico de postagens contra o racismo. Mirtes saiu cedo para pegar no batente. Ela
é empregada doméstica, trabalha em um dos apartamentos do prédio Píer Maurício
de Nassau, no bairro de São José, região central do Recife. As famosas “Torres
Gêmeas”, ícone controverso do jeito de viver da elite pernambucana. Pela mão
leva o filho Miguel, de cinco anos, através dos muitos quilômetros que separam
a periferia do centro. Não há creche, estão fechadas por conta da pandemia da
Covid-19 que há mais de três meses atinge o país.
Mirtes Renata seria só mais uma mulher preta, mãe solteira,
se virando para sobreviver no dia a dia bruto desse mundo desigual, se não
fosse a tragédia que aconteceu naquela tarde. Ela saiu para passear com os
cachorros da sua patroa. Miguel ficou no apartamento, sob a responsabilidade de
Sarí, a patroa, que fazia as unhas com manicure atendendo em domicílio. O
menino chora para ir encontrar com a mãe, faz birra (um clássico da fase dos
cinco anos. Quem tem filho sabe). Corre para o elevador. Sarí desiste de
evitar. Aperta algum botão do elevador e deixa que o menino se vá. Ele sobe até
o sétimo andar, depois até o nono e desembarca. No gradil do hall de máquinas
se debruça, possivelmente procurando ver a mãe, e cai. Miguel foi socorrido,
mas não chegou com vida ao hospital.
Sarí Gaspar Corte Real foi autuada em flagrante, por
negligência, e saiu após pagar fiança de 20 mil reais. A partir desse momento,
para a imprensa pernambucana ela seria apenas a patroa, a empregadora, a mulher
que não teve sua identidade revelada. O vídeo com as evidências em um primeiro
momento não foi divulgado, apesar de ser citado em detalhes, acompanhado de um
elogio ao trabalho da perícia que refez o passo a passo do que aconteceu na
hora que o elevador parte do quinto andar, com Miguel, sozinho ali dentro. Mas
ele continua passando na minha cabeça desde que soube desse fato, se repetindo,
e o rosto de Miguel é o rosto do meu menino preto, aos cinco anos de idade. É o
sorriso do meu menino que vejo se esvaindo, por 35 metros, até o fatídico
encontro com o chão.
Mirtes Renata Santana da Silva, a empregada, a mãe do menino
que caiu. É fácil encontrar seu nome e perfil nas redes sociais. Não há um
adjetivo para descrever a mãe que perde um filho, penso nisso enquanto escrevo
este artigo. Talvez porque não haja como descrever o tipo de dor, mesmo que as
mães da periferia a conheçam tão bem. Nas fotos ela, tão jovem, sempre sorri. E
corre. E brinca carnaval. E agradece a Deus e às outras mulheres de sua vida a
oportunidade de celebrar com festa os cinco anos do seu filhinho. E eu leio ali
sororidade, resiliência, e a solidão que embala a vida das mulheres negras. E
isso também me dói. Mirtes é a mulher
jovem que emoldura sua foto do Facebook com um bem-humorado apelo para que as
pessoas fiquem em casa. Ela não pode ficar porque para muitos, no nosso país de
herança escravocrata, serviço doméstico é essencial e ela tem que escolher a
melhor estratégia para sobreviver.
No Brasil 6,356 milhões de pessoas sobrevivem trabalhando
nos serviços domésticos. 97% delas são mulheres, em sua maioria negras e com
baixa escolaridade. Dessas, apenas 1,757 milhão atuavam com carteira
assinada. Os dados são da última
divulgação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad
Contínua). A informalidade continua sendo traço principal no serviço doméstico,
embora desde abril de 2013, esse trabalho seja regulamentado por lei. Um
conjunto de normas para a profissão, incluindo obrigações de empregadores, foi
sancionada em 2 de junho de 2015. O pior dia da vida de Mirtes aconteceu
exatamente cinco anos depois da sanção da Lei que deveria garantir dignidade e
segurança ao seu labor.
A resistência à regulamentação do serviço doméstico no
Brasil vai além de questões econômicas, é um dos piores traços do racismo
estrutural que nos adoece cotidianamente. É cunhada sob a mesma lente maldita
que embrutece o olhar sobre corpos negros. Que naturaliza as balas perdidas
dentro da van, dentro de casa, na camisa do uniforme da escola. Que relativiza
os segundos que uma pessoa pode aguentar sem respirar. Que transforma pinho sol
em arma química. Que faz algumas vidas importarem menos que outras. A mesma
lente que embota os olhos de quem vê uma criancinha de cinco anos e por conta
da cor da sua pele não pensa que como qualquer outra, ela só precisa de um
colo, de uma distração ou de alguns minutos de atenção e cuidado.
Miguel Otávio Santana da Silva será mais um nome na nossa
revolta, no nosso inconformismo e será só isso se não formos capazes de trazer
ao mundo real desdobramento para as hashtags. Se não refletirmos sobre o
racismo que está no nosso DNA como nação, como sociedade, mas também nos
pequenos gestos do nosso cotidiano.
Superar o racismo só será possível se tivermos condições de reconhecer
privilégios, de rever atitudes costumazes, mas principalmente, depende da nossa
capacidade de pensar conjuntamente questões como economia e raça, entendendo
que classe tem cor e que essa é uma relação estrutural impossível de ser
analisada a partir da fragmentação.
A história de Mirtes, para além da tragédia e do horror que
pontuou sua Blackout Tuesday, continuará naturalizada e anônima enquanto
insistirmos em olhar esse fato como a história de uma mulher e não de milhares
de mulheres, como uma notícia extraordinária de jornal, enquanto pensarmos que
punir uma pessoa, atendendo nosso justo e sazional desejo de justiça, resolverá
essa dor lancinante que cala no peito do povo negro dia após dia, através dos
séculos.
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* Ana Cristina Santos - Jornalista, pesquisadora sobre
comunicação alternativa e popular e doutoranda em Comunicação na Universidade
de Brasília.
Texto e imagem reproduzidos do site: vermelho.org.br

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