Polícia indicia patroa por abandono de incapaz na morte do menino Miguel
Caso Miguel: Sari Corte Real é indiciada por abandono de
incapaz que resultou em morte
Segundo polícia, mesmo não tendo a intenção de matar o
menino, ex-patroa da mãe do garoto, intencionalmente, o deixou no elevador do
edifício. Pena pode ser de quatro a 12 anos de prisão.
Por Pedro Alves, G1 PE
A primeira-dama de Tamandaré (Litoral Sul de Pernambuco),
Sari Gaspar Corte Real, foi indiciada por abandono de incapaz que resultou em
morte. Ela é a ex-patroa da doméstica Mirtes Renata, mãe do menino Miguel
Otávio, de 5 anos, que morreu após cair de uma altura de 35 metros num prédio
de luxo, no dia 2 de junho. No dia da morte, o menino havia sido levado pela
mãe ao trabalho, no apartamento de Sari.
O inquérito policial foi concluído nesta quarta-feira (1º).
De acordo com o delegado Ramon Teixeira, responsável pela investigação, a
moradora do prédio cometeu um "crime preterdoloso". A pena pode ser
de quatro a 12 anos de prisão
O termo "preterdoloso" refere-se ao caso em que o
indiciado pratica um crime diferente do que havia inicialmente projetado
cometer.
No dia da morte, Miguel entrou várias vezes nos elevadores
do prédio, sendo retirado por Sari. Ele procurava a mãe, que tinha saído para
passear com o cão da família de primeira-dama.
Em uma delas, a ex-patroa da mãe do garoto apertou o botão
da cobertura do edifício e deixou a criança sozinha. O garoto foi até o 9º
andar e caiu, depois de subir em uma área onde ficam equipamentos de
ar-condicionado.
Ramon Teixeira disse que a conduta de permitir o fechamento
da porta do elevador foi dolosa, mesmo que Sari não visualizasse a
possibilidade de que sua conduta resultaria na morte da criança.
As informações foram repassadas em coletiva de imprensa
transmitida pela internet, nesta quarta. Participou, também, o perito do
Instituto de Criminalística (IC) André Amaral.
O delegado disse que a decisão foi tomada, também, porque
Sari Corte Real sequer acompanhou a movimentação do elevador pelo visor que
fica no andar. Ela retornou diretamente ao apartamento, onde estava fazendo as
unhas com uma manicure.
"Ela não fez o acompanhamento, ela própria admite isso.
A isso, somados a outros elementos de prova, como o depoimento da manicure, de
que a moradora retorna ao seu apartamento para retomada dos serviços de
manicure, o tratamento e embelezamento de suas unhas. Frases consignadas nos
autos de que não teria responsabilidade sobre a criança, que deixou a criança
ir passear. Uma infinidade de elementos de convicção reunidos que nos fez
considerar o dolo de abandonar", declarou o delegado.
Ainda segundo Ramon Teixeira, o abandono de incapaz ocorreu
de forma dolosa, com intenção, por Sari. O resultado da morte, no entanto, poderia
ter acontecido não apenas pela queda, mas por várias outras possibilidades de
risco no prédio.
O delegado disse que ao deixar Miguel sozinho no elevador,
Sari, inclusive, infringiu uma lei municipal, que proíbe a presença de menores
de dez anos desacompanhados nesse tipo de transporte.
"A criança, da qual a gente tanto falou, tinha 5 anos
de idade, ela sequer poderia ficar desacompanhada no elevador. Pelo acervo
probatório dos atos, teve, sim, uma etapa de cogitação. Teria ocorrido por uma
irritação ou cansaço de retirar o menino do elevador. Sete vezes, segundo ela.
Duas em um outro elevador, que não possui imagens", afirmou.
Uma perícia feita pelo IC constatou que Sari Corte Real,
momentos antes da morte de Miguel, acionou a tecla da cobertura, saindo do
elevador em seguida.
O laudo contradiz a versão dada pelo advogado de defesa de
Sari. Segundo o laudo, o menino criança chegou a acionar a tecla de alarme
antes chegar ao 9º andar, de onde caiu. A ocorrência foi considerada um
acidente pelos peritos.
O delegado, por sua vez, afirmou que há três hipóteses para
esse fato. A primeira seria a simples simulação do ato de pressionar o botão,
como disse a indiciada. A segunda seria o pressionamento do botão, mas sem
resposta do sistema, já que, segundo depoimento da própria Sari à polícia,
ocorre frequentemente nos elevadores do prédio.
A terceira seria o pressionamento e acionamento efetivo do
elevador para a cobertura. Entretanto, a perícia mostra que, em momento algum,
o elevador chega a esse andar.
O perito André Amaral informou que o laudo do Instituto de
Criminalística confirma que o caso foi um acidente e que não houve agência de
nenhuma outra pessoa na morte de Miguel, a partir do momento em que ele fica
sozinho no elevador.
"Verificamos que, naquele andar, a janela estava aberta
e, mesmo tendo 1,10m, ele teve acesso. uma criança de até 90 cm conseguiria
fazer aquela escalada. Estivemos mais duas vezes no local, com total de cinco
peritos no local, mais cinco no IC, fazendo cruzamento das informações.
Conseguimos visualizar a dinâmica do evento em si e perceber o tempo de queda
da criança. Desde a saída do nono andar até a queda, levou em torno de 58
segundos, que fizeram que a gente considerasse inviável outra pessoa participar
do evento", declarou o perito.
Cronologia dos fatos
A cronologia dos fatos começa às 13h05, quando Mirtes
passeava com o cachorro pela pista do edifício, mexendo no telefone celular, e
termina às 13h27, já depois da queda, quando o menino já está sendo socorrido.
Às 13h06, Miguel entra no elevador social e Sari está bem próxima dele. O
menino passa o dedo pelo painel e aperta o 5º andar e, em seguida, também
aperta o botão do 4º andar.
A mulher segura a porta e a filha aparece nas imagens, do
lado de fora. Miguel também pressiona o botão de alarme no elevador. Sari o
chama mais vezes para sair do local, o menino obedece e ela o acompanha. Às
13h07, o menino entra no elevador de serviço e a mulher segura a porta, pelo
lado de fora, enquanto aparenta telefonar para alguém.
O menino pressiona cinco vezes o mesmo botão, que aparenta
ser o do 5º andar. Ele aperta três vezes o botão do alarme e a mulher parece
perguntar algo a ele. Às 13h08, Miguel aparenta pressionar o botão do 9º andar,
tecla logo acima da do 5º andar. Sari gesticula com a cabeça, como se chamasse
o menino para sair do elevador, e ele parece obedecer. A mulher segura a porta
corta-chamas e permite que passe por ela, seguindo logo atrás dele.
Às 13h08, o elevador de serviço para no 9º andar. Nesse
momento, Mirtes, a mãe de Miguel, já está fazendo o caminho de volta com o
cachorro da então patroa. Miguel entra no elevador social e Sari, segurando a
porta com uma mão, aparenta tentar telefonar para alguém. Ele pressiona o botão
do 5º andar, se olha no espelho e, às 13h09, sai do elevador, acompanhado por
Sari. O elevador de serviço, que seguia parado no 9º andar, desce para o 5º e a
porta se abre.
Às 13h10, Miguel entra novamente no elevador social e
pressiona o botão do 9º andar. Sari vem correndo atrás, segura a porta com a
mão e ordena que ele saia, apontando para o lado de fora. Ele obedece ao
comando da mulher e sai correndo do elevador. Ele, em seguida, aparece correndo
logo após abrir a porta corta-chamas e entra mais uma vez no elevador de
serviço, cuja porta já se estava aberta no 5º andar.
Ainda às 13h10, Miguel se dirigindo ao painel do elevador, e
Sari chega logo em seguida. O menino coloca ambas as mãos no painel do
elevador, sobre vários botões, e aparenta apertar a tecla do 5º andar e, em
seguida, o 8º e o 9º andares. A mulher retém a porta do elevador, pelo lado de
fora, e observa a movimentação da criança. O menino aperta a tecla do alarme
duas vezes e mostra a língua para a mulher, que por sua vez aponta o dedo
indicador para ele.
Logo em seguida, Sari aparenta pressionar o botão
"C", tecla mais alta ao lado direito do painel. Ela recua, retira a
mão e permite o fechamento da porta do elevador, indo em direção à porta
corta-chamas. Miguel, no elevador, aparenta pressionar as teclas do 15º, 19º e
20º andares. A porta se fecha e possível observar que os sinais luminosos do
2º, 9º, 15º e 20º andares estão acionados.
O elevador desce até o 2º andar e, às 13h11, a porta se abre
no 2º andar do edifício. Miguel olha para o lado de fora, mas permanece parado
no interior do elevador. A porta se fecha novamente. Miguel parece pressionar o
botão de alarme do elevador. É possível visualizar os sinais luminosos do 9º,
15º e 20º andares acesos.
Às 13:11:25, o elevador sobe e para no 9º andar do edifício
e, quatro segundos depois, a porta se abre e Miguel imediatamente sai do
elevador. No exato instante em que Miguel deixa o elevador de serviço, no 9º
andar, uma mulher ingressa no 31º andar, no mesmo elevador social em que ele se
encontrava 1 minuto e 22 segundos antes.
Às 13:11:32, Miguel abre a porta corta-chamas, ao lado
esquerdo da saída, e sai do alcance da câmera do elevador. Cinco segundos
depois, a porta se fecha e os sinais luminosos do 15º e 20º andares seguem
acesos. Às 13:12:33, Miguel aparece caindo na área do “lobby” (andar L). Um
segundo depois, uma paleta de metal cai, logo após o menino sofrer o impacto da
queda.
Nesse mesmo instante, Mirtes Souza, com o cachorro da patroa
e o zelador, entra no elevador social. Ela demonstra apreensão e o zelador
tenta consolá-la. O elevador desce para o subsolo e a mulher bate no peito,
visivelmente nervosa. Ela, mostrando nervosismo, olha para o telefone celular e
desce rapidamente no lobby. Às 13:14:12, o zelador e a mãe do garoto, com o
cachorro, se aproximam de Miguel, caído ao chão.
O zelador vira o corpo dele e a mãe se desespera. Um
encarregado e outro funcionário chegam ao local. Sari chega ao local da queda
às 13:15:32 e, às 13:21:52, deixa o local da queda. Às 13:24:23, ela, já no 5º
andar, ingressa no elevador de serviço. Ela retorna ao local da queda, onde
mais pessoas se encontram. Ela consola a mãe do garoto, às 13:26:57, ingressa
no elevador de serviço, retém a porta aberta enquanto Miguel é carregado para o
interior do elevador.
Eles descem no andar P e Sari é a última a deixar o
elevador.
Dois lados
Diante do indiciamento, a defesa da doméstica Mirtes Renata,
mãe de Miguel, afirmou, por meio de nota, que Sari deverá prestar contas à
Justiça e explicar frase e atitudes.
Os defensores da primeira-dama de Tamandaré acreditam que
documento da polícia "conflita" com informações contidas nos autos.
Investigações
De acordo com investigadores ouvidos pela TV Globo, 20
depoimentos foram tomados pela polícia, ao longo da apuração do caso Miguel.
Entre eles, estão os de pessoas que participaram do atendimento no Hospital da
Restauração (HR), no Recife, além de policiais que registraram a ocorrência.
O depoimento de Sari Corte Real ocorreu na segunda-feira
(29). A delegacia de Santo Amaro, responsável pelo inquérito, abriu duas horas
mais cedo.
Por volta das 8h30, Mirtes Souza chegou à delegacia para
falar com a ex-patroa. Após a conversa, Mirtes afirmou que Sari não demonstrou
arrependimento pelo ocorrido.
A empregada doméstica entrou na delegacia e chegou a se
encontrar com Sari Corte Real extraoficialmente. Na saída de Mirtes, houve
tumulto e policiais buscaram conter a população que estava no local.
Depois de cerca de oito horas, Sari deixou a delegacia em um
carro da polícia, sob gritos de "assassina" e mais protestos. O
marido dela, prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker (PSB), saiu em seguida em
outro carro.
Caso Miguel
Miguel morreu no dia na tarde do dia 2 de junho, quando a
mãe dele havia descido do apartamento de Sari para passear com a cadela da
família, a mando da patroa, e deixou o filho aos cuidados da primeira-dama. O
menino entrou no elevador de serviço, e a empregadora da mãe parece apertar o
botão que leva à cobertura.
Sozinho, Miguel apertou vários botões. Parou no sétimo
andar, mas não desceu. Depois, ele subiu mais dois andares, saiu e abriu uma
porta. Apenas um minuto depois, ele caiu no térreo. De acordo com a perícia, a
queda foi de uma altura de 35 metros.
As câmeras de segurança do prédio também registraram que,
antes de subir sozinho, Miguel entrou outras quatro vezes nos elevadores, e foi
convencido por Sari a sair. No dia 8 de junho, os peritos do IC voltaram ao
prédio e disseram que o caso foi acidental.
Sari, no dia da morte de Miguel, foi autuada em flagrante
por homicídio culposo, quando não há intenção de matar, e pagou fiança de R$ 20
mil para responder ao processo em liberdade. Em nota enviada na época, o
advogado afirmou que a ex-patroa de Mirtes está profundamente abalada e que é
solidária ao sentimento da família.
Homenagens e protestos
O caso ganhou repercussão nacional, com manifestações de
políticos e artistas na internet e criação de um abaixo-assinado virtual com
mais de 2,5 milhões de assinaturas pedindo justiça.
No dia 12 de junho, durante um ato em frente ao prédio de
onde Miguel caiu, manifestantes levaram cartazes com pedido de justiça e
caminharam até a delegacia onde o caso é investigado. Eles exigiram que a
ex-patroa da mãe do menino seja punida por homicídio doloso, quando há intenção
de matar, e não culposo, como entendeu a polícia.
No dia 9 de junho, artistas pediram justiça em um protesto
em barcos no Rio Capibaribe, no Recife. No dia anterior, 8 de junho, uma missa
de sétimo dia foi celebrada virtualmente devido à pandemia da Covid-19.
No dia 7 de junho, outra homenagem a Miguel foi feita, mas
em Tamandaré. Em 6 de junho, uma pintura com o rosto do menino foi feita na
frente do prédio onde ocorreu o acidente. Em 5 de junho, um protesto reuniu
centenas de pessoas em frente ao prédio onde vive a família dos ex-patrões de
Mirtes, com forte participação do movimento negro.
Auxílio emergencial
O nome de Sari Gaspar Corte Real, primeira-dama de
Tamandaré, aparece no portal Dataprev após um pedido de auxílio emergencial,
benefício concedido durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus.
Segundo o Dataprev, o auxílio emergencial foi solicitado no
dia 14 de maio. O portal recebeu o pedido no dia seguinte. Os dois filhos de
Sari, de 6 e 3 anos de idade, estão cadastrados como parte do grupo familiar.
Procurado pelo G1, o advogado de Sari Gaspar Corte Real,
Pedro Avelino, informou por telefone que a solicitação de auxílio emergencial
feita em nome dela é uma fraude.
Funcionárias-fantasma
Nesta quarta (1º), o Ministério Público de Pernambuco (MPPE)
entrou com uma ação civil pública contra Sérgio Hacker por improbidade
administrativa. É que o gestor contratou a mãe e a avó de Miguel como
servidoras públicas, pagas com dinheiro do município, embora elas trabalhassem
na casa da família.
Em junho, o Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco
(TCE-PE) confirmou que a mãe e a avó de Miguel eram contratadas da Prefeitura
de Tamandaré. Durante a apuração do caso, foi descoberta outra
funcionária-fantasma que prestava serviços particulares à família do prefeito.
Os técnicos do TCE-PE fizeram uma visita à prefeitura de
Tamandaré e constataram a contratação de Mirtes e Maria, além de Luciene Neves,
que trabalha na casa de praia do prefeito. Segundo o o conselheiro do TCE,
Carlos Porto, isso implica em improbidade administrativa por estar sendo usado
servidores com recursos públicos em trabalhos particulares.
O prefeito Sérgio Hacker afirmou, em nota, que forneceu
documentos ao TCE e ao Ministério Público de Pernambuco que demonstram que não
houve prejuízo aos cofres públicos. Disse, ainda, que continuará contribuindo
com as investigações.
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