Em últimas aparições, Jô Soares revelou problema que o perseguia e fez pedido
Jô reencontrou e perdoou taxista que matou sua mãe e sofreu sua maior dor ao perder filho único. Nas últimas entrevistas e aparições públicas, ele criticou o negacionismo, enalteceu a Ciência e revelou problema que o perseguia
Jô Soares morreu na madrugada desta sexta-feira (5) aos 84 anos. O apresentador estava afastado da televisão desde 2016, quando teve o contrato encerrado pela TV Globo após 16 anos no ar.
Artista multifacetado e de talento extraordinário, Jô Soares nasceu no Rio de Janeiro em 1938. Era filho único de uma família rica que perdeu a fortuna de repente. O pai era operador da Bolsa de Valores, e a mãe, dona de casa e leitora assídua. Ela teve o filho aos 40 anos, nada comum para a época.
Em uma de suas últimas aparições públicas na TV antes de morrer, Jô foi entrevistado em 2020 por Marcelo Tas. Na ocasião, ele desmentiu um boato de que teria montado uma estrutura de UTI em sua residência, mas explicou que tinha um problema no nervo ciático que o incomodava muito. “É uma dor horrorosa e que custa para passar. Se eu andar uma pequena distância, ela começa a apitar. Mas isso não merece nenhuma UTI”, disse.
Jô também se disse assustado com pessoas que admitem ter votado em Jair Bolsonaro só para fugir do PT. “Isso é algo doente”, afirmou.
Antes da pandemia, Jô Soares estava em cartaz em São Paulo com a peça “O Livro ao Vivo”, em 2019. Já em meio ao período de isolamento social, ele recebeu doses de vacinas contra o novo coronavírus e foi flagrado pela imprensa nas duas ocasiões.
No dia 27 de fevereiro de 2021, um sábado, Jô esteve no posto drive-thru do estádio do Pacaembu, em São Paulo. O então governador do Estado, João Doria, divulgou um vídeo do momento em que cumprimenta o artista após a imunização. Jô, vim dar um abraço carinhoso pra você, fique com Deus e protegido”, disse o político.
No mês de maio de 2021, ao ser imunizado pela segunda vez, o apresentador conversou com uma equipe do Jornal Nacional, da TV Globo, em um posto drive-thru e pregou contra o negacionismo perpetrado pelo bolsonarismo: “É fundamental fazer uma campanha porque eu sei que tem gente que toma a primeira dose e não toma a segunda, eu não entendo, e tem gente que não toma a vacina. Isso é realmente uma coisa medieval. Mais vacinas para todos e valorização da ciência e dos cientistas. Eu realmente só não fico desesperado porque eu acredito muito, muito no Brasil, mas é fogo porque de vez em quando vem um balde de água, e você vê que falta muito”.
Mortes da mãe e do filho
Jô perdeu a mãe Mercedes Leal após um trágico atropelamento. Na época, ela tinha 70 anos e ele apenas 30. Discreto, o apresentador nunca comentou muito a respeito do assunto, mas abriu o coração em 2015, em uma entrevista no formato de pingue-pongue a Marcelo Bonfá. O trecho está disponível no canal do YouTube do jornalista.
“Mamãe morreu atropelada, em um dia de chuva terrível. O motorista do táxi não teve a menor culpa. Ela tinha 70 anos. O motorista socorreu minha mãe e levou para o hospital. Ele fez tudo certo. Só que ela teve uma fratura de base de crânio e não resistiu”, disse Jô.
O apresentador revelou, ainda, que reencontrou o motorista anos depois. “Dez anos depois, eu peguei um táxi no Santos Dumont e, quando cheguei em casa, o motorista falou: ‘Eu preciso dizer uma coisa para o senhor. Fui eu que atropelei sua mãe. E desde esse dia, isso já faz dez anos, eu não consigo mais dormir. Só vou conseguir dormir no dia que o senhor me disser que me perdoa”, contou Jô.
“Respondi para ele: ‘Mas, meu filho, você está perdoado desde o dia que pegou a minha mãe, socorreu e ficou ao lado do meu pai até a minha mãe morrer. Você não teve culpa nenhuma. Eu te perdoo, você está mais que perdoado. Vai em paz.’. Ele chorava e eu chorei muito também”.
Já a dor da perda do filho Jô nunca conseguiu superar. O apresentador era pai de Rafael Soares, que não resistiu após passar por um tratamento contra um câncer no cérebro aos 50 anos.
Discreto sobre a relação entre pai e filho, Jô abriu uma brecha para comentar sobre a morte do filho na abertura do “Programa do Jô”. Em tom emocionado, o apresentador disse: “A nossa abertura hoje vai ser um pouco diferente, porque na última sexta-feira (31), eu sofri o pesadelo de todo pai, a inversão da ordem natural das coisas, a perda de um filho. Meu filho Rafael esteve no mundo durante 50 anos e foi uma criança especial. Como era autista, permaneceu menino até o fim”, começou ele.
“Passou a vida inteira na realidade do próprio mundo. Corpo de adulto, coração e alma de criança. Adorava música, tocava piano, mas sua grande paixão era o rádio. O Derico, em uma prova singela de amizade, até chegou a gravar as vinhetas. E ele não tirava a rádio do ar nunca, até mesmo no seu aniversário, nem na hora de apagar a velinha. Vivia com entusiasmo e até com paixão. Tenho muito orgulho do meu filho. Gostaria de dedicar essa abertura a ele e a Theresa, sua mãe, que foi minha grande companheira durante 20 anos. Também quero aproveitar para agradecer o carinho de pessoas queridas, amigos e desconhecidos”, completou.
Vida, obra e histórias
Quando criança, Jô já chamava a atenção com suas imitações e ousadias. Ele se pendurava na cobertura do anexo do Copacabana Palace, onde morava no Rio de Janeiro, ameaçando pular na piscina, só para rir com a reação dos turistas ao sol.
José Eugênio Soares estudou na Suíça e nos Estados Unidos, aprendeu a falar seis línguas, pensou em ser diplomata e acabou no showbusiness, encarnando personagens caricatos de bordões memoráveis na televisão brasileira para depois consolidar o maior programa de entrevistas do país.
Na escola, Jô não era chamado de gordo apesar do tamanho. Ele tinha o apelido de poeta, por escrever poesias. Passou sua vida mais gordo do que magro e odiava o adjetivo gordinho ou forte, por considerar os dois pejorativos. Usou o peso a seu favor, como uma marca registrada. Gostava de junk food, em especial sanduíches, e assumia assaltar a geladeira de madrugada para comer feijão gelado com azeite.
Ele se casou três vezes, com a atriz e poeta Tereza Austragésilo, a atriz Silvia Bandeira e a designer gráfica Flavia Junqueira, com quem manteve uma amizade profunda depois do divórcio. Teve um filho com Austragésilo, Rafael, autista de “alto nível” parecido com o do personagem de Dustin Hoffman em “Rain Man”, como Jô costumava dizer nas poucas vezes que falou do filho em público.
Jô Soares também era dado a paixões – livros, filmes, teatro, motos, música, em especial jazz e blues, quadrinhos, charutos cubanos, tendo chegado a lançar uma marca própria deles, refrigerante diet, o que dizem ser o que tinha na sua caneca, artes plásticas e futebol, como torcedor do Fluminense.
Notívago, costumava dormir tarde e acordar tarde. Morava em São Paulo, no bairro de Higienópolis, num apartamento de dois andares, um para sua moradia e outro para escritório, conectados por um elevador a vácuo. Ele se considerava uma pessoa mística, acreditava num outro plano de existência e era devoto de Santa Rita de Cássia. Mas não se dizia católico por não concordar com muitas posições da Igreja.
Jô Soares tinha o humor como visão de mundo e se estabeleceu como um dos artistas mais conhecidos do Brasil, à disposição todas a noites na casa das pessoas, entretendo e informando, para sempre se despedir com o beijo do gordo.
Personagens, talentos e livros
Jô deu vida a mais de 200 personagens, como o Capitão Gay e a cantora Norminha, marcando bordões como “vai para casa Padilha”, “não me comprometa” e ” macaco tá certo”.
Lançou cinco romances policiais, “O Xangô de Baker Street”, de 1995, “O Homem que Matou Getúlio Vargas”, de 1998, “Assassinato na Academia das Letras”, de 2005, e “As Esganadas”, de 2011, além de uma autobiografia em dois volumes, lançada há cinco anos.
Chegou a vender mais de 1 milhão de cópias, alcançando o topo da lista dos mais vendidos, e foi editado nos Estados Unidos e na Europa. Gostava de misturar ficção com fatos e fazer referências a personagens verídicos.
Jô tocava bongô, piano, piston, saxofone, trompete e violão. Compunha prefixos musicais para seus espetáculos e já teve programas musicais em rádios.
Pintava acrílico sobre tela, chegando a fazer exposições individuais no Brasil e no exterior. Uma mostra em São Paulo, em 2004, por exemplo, contou com 54 obras suas.
Frases
Confira, a seguir, algumas frases marcantes de Jô Soares:
“O medo da morte é um sentimento inútil: você vai morrer mesmo, não adianta ficar com medo. Eu tenho medo de não ser produtivo.”
“O meu humor tem sempre um fundo político, sempre tem uma observação do cotidiano do Brasil.”
“Os meus personagens são muito mais baseados no lado psicológico e no social do que na caricatura pura e simples. Eu nunca fiz um personagem necessariamente gordo. Eles são gordos porque eu sou gordo.”
“Sou muito vaidoso, nunca escondi isso. Qual é o artista que não é vaidoso? Todos. É uma profissão de vitrine de exibidos. Você nasce querendo seduzir o mundo.”
“Sendo gordo e ter o apelido de poeta – acho que já era uma vitória.”
Texto e imagens reproduzidos do site: pragmatismopolitico.com.br
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